Avelino Ferreira, 63 anos, brasileiro, casado, sete filhos, sete netos. Jornalista; escritor; professor de Filosofia.







segunda-feira, 28 de abril de 2014

Nota sobre trabalho escravo em fazendas da região

A primeira denúncia de trabalho escravo na região e que teve repercussão nacional foi feita por um grupo de combate aos escravocratas e que tinha na linha de frente os advogados Yvan Senra Pessanha, Jorge Freitas e Rosemary Lopes de Carvalho, o deputado federal José Maurício Linhares, o funcionário da CEF Avelino Leôncio Pereira Gomes (que foi perseguido, preso e torturado pela ditadura) e o jornalista Avelino Ferreira.

A denúncia foi publicada por mim no Monitor Campista no dia 2 de maio de 1981 e foi reproduzida, em parte, por vários órgãos da mídia nacional. Tratava-se da escravidão na Fazenda ou Destilaria São Pedro, em Italva, então distrito de Campos. Era uma propriedade de Evaldo Inojosa, senhor de cana e gente. Trouxe 367 trabalhadores, com parte de suas famílias, de Alagoas, colocou-as em dois enormes barracões e homens armados vigiavam para evitar que eles fugissem.

Nos barracões (ou galpões) os escravos juntavam pedras, fazendo-as de fogões. Cozinhavam com panelas de ferro sobre as pedras e, por dentro delas, a lenha queimava, fazendo fogo e fumaça            que acinzentava o ambiente, provocando intoxicação. O "armazém" da fazenda fornecia o que comer e a carne era o que conseguiam pescar no rio Muriaé, que passava ao lado. Para fazer suas necessidades e até dormir com esposa e filhos, os escravos esticavam cordas e, nelas, lençóis, separando uns dos outros. 

O quadro é muito pior do que este que estou narrando. No dia 1º de maio de 1981, dois caboclos alagoanos, coincidentemente chamados Manoel, fugiram pelo Muriaé, seguindo para leste. Como de maio a setembro o rio fica quase seco, puderam os dois caminhar por seu leito, cheio de pedras, chegando a Campos à noite. Sem nada conhecer, informaram-se da existência de um abrigo (São Francisco de Assis) na 28 de Março. Chegaram lá com os pés sangrando, as roupas em frangalho, cansados e assustados. Foram bem tratados, tomaram banho e se alimentaram.

Dia seguinte, informaram-lhes que receberiam ajuda no escritório de Yvan Senra, na XV de Novembro. Lá se reuniam os brizolistas que lhes dariam auxílio. Assim fizeram e nos encontraram. Imediatamente fomos à Subdelegacia Regional do Trabalho e, junto com o subdelegado, jornalistas da Folha da Manhã, A Notícia e eu, pelo Monitor Campista, tomamos o rumo da Fazenda São Pedro. Registro que pela Folha, foi Orávio de Campos e, pela Notícia, Maurício Guilherme, os dois também brizolistas.

Jorge Freitas chamou a TV Globo, que enviou a repórter Regina Martinez, com cinegrafistas. Na fazenda, todos constataram a escravização dos alagoanos. As carteiras de trabalho ficavam com o capataz. Homens armados juntaram-se aos dirigentes da fazenda, porque o dono nunca estava lá. Inojosa estava em Brasília nesse dia. Num repente, estávamos nós, de um lado, e os dirigentes da fazenda, seus capatazes e o subdelegado do trabalho, do outro lado. Sentindo o clima pesado, Regina Martinez afastou-se, junto com os cinegrafistas da Globo que foram impedidos de continuar filmando. Ela pediu ao motorista da Veraneio: "ligue as turbinas". Entraram no carro e saíram. 

Nós estávamos tensos. Sentindo que o pior poderia acontecer, pois os caras armados, alagoanos, eram pistoleiros, fomos saindo devagar. Pegamos os carros e fomos embora. O carro em que eu estava (sempre eu) foi perseguido até Italva. Atravessamos a ponte e paramos numa ruazinha. O pessoal da fazenda, armado, passou direto. À noite, satisfeitos por termos cumprido o nosso papel como jornalistas, eu, Orávio e Maurício Guilherme nos encontramos no Largo da Imprensa (Calçadão) para falarmos sobre  nossas matérias de página inteira. 

No dia seguinte, só o Monitor publicou. Inojosa, eu soube, ligou tarde da noite e os outros jornais nada publicaram. Como "castigo", o Monitor, dirigido por Everaldo Lima, ficou sem propaganda das usinas e agregados por meses. Até que Inojosa promoveu o sétimo encontro internacional de produtores de açúcar e álcool, no Palácio da Cultura, e queria um caderno especial. Só quem tinha todo o material era o Monitor (a Folha havia nascido em 1978/1979). Aloysio Balbi foi chamado para fazer o caderno e os usineiros e o jornal voltaram as boas.

Os dois escravos fugidos foram levados para o Rio de Janeiro por Yvan Senra, que temia que eles fossem assassinados. Conseguiram emprego na construção civil. Não soube mais deles. Eu tive que ficar um tempo fora do jornal, porque havia aqueles que temiam que eu fosse assassinado. Inojosa amargou um revés nunca antes sofrido, porque os jornais do Rio publicaram uma série de matérias sobre ele, inclusive descobrimos que ele era o maior devedor de INSS do Estado. Com a democracia, a liberdade de falar e escrever e o fim do dinheiro do governo para os usineiros, estes começaram a falir. Inojosa, que era dono de Outeiro, foi um deles.

Fui estigmatizado. Como usava barba longa, às vezes chapéu de aba larga, ligado ao Brizola, fundador do PDT e com um estilo de escrita não aceitável pelo statu quo, sofri muito. Agora, quando tanto se fala em escravidão no campo, este fato vem sempre à mente. Constato que as leis coibindo o trabalho escravo surtem efeito, mas o "atual" trabalho "escravo" não é como aquele. Assim como aquele não se comparava à escravidão do século XIX. De qualquer maneira, não se pode aceitar as condições sub-humanas. Infelizmente, esse tipo de escravidão ainda ocorre no nosso país e num estado costeiro, importante e rico, como é o nosso Estado do Rio.

Bem, escrevi muito, mas é um registro que há muito desejava fazer. E aqui as minhas homenagens póstumas a Yvan Senra, Avelino Leôncio, Jorge Francisco Freitas, Irineu Marins, João de Souza (João Duro) e Olavo Marins que, juntamente com os ainda vivos que àquela época estavam juntos, continuam combatendo o bom combate.

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