MULHERES TORTURADAS (ALGUMAS)
(grabois.org.br)
Depoimentos extraídos do livro
" Direito à memória e à verdade : Luta, substantivo feminino" de
Tatiana Merlino
Sobe depressa, Miss Brasil’, dizia o
torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no
Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os ‘40 dias’ do parto. Na sala
do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada e, embaixo, as letras
EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando entrei. ‘Olha aí a Miss
Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca’, disse
ele.
Um outro: ‘Só pode ser uma vaca terrorista’.
Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca leiteira Miss
Brasil numa exposição de gado. Riram mais ainda quando ele veio para cima de
mim e abriu meu vestido. Picou a página do jornal e atirou em mim. Segurei os
seios, o leite escorreu.
Ele ficou olhando um momento e fechou o vestido. Me
virou de costas, me pegando pela cintura e começaram os beliscões nas nádegas,
nas costas, com o vestido levantado. Um outro segurava meus braços, minha
cabeça, me dobrando sobre a mesa. Eu chorava, gritava, e eles riam muito,
gritavam palavrões.
Só pararam quando viram o sangue escorrer nas
minhas pernas. Aí me deram muitas palmadas e um empurrão. Passaram-se alguns
dias e ‘subi’ de novo. Lá estava ele, esfregando as mãos como se me esperasse.
Tirou meu vestido e novamente escondi os seios. Eu sabia que estava com um
cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele ria, zombava do cheiro horrível
e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. No meio desse
terror, levaram-me para a carceragem, onde um enfermeiro preparava uma injeção.
Lutei como podia, joguei a latinha da seringa no
chão, mas um outro segurou-me e o enfermeiro aplicou a injeção na minha coxa. O
torturador zombava: ‘Esse leitinho o nenê não vai ter mais’. ‘E se não
melhorar, vai para o barranco, porque aqui ninguém fica doente.’ Esse foi o
começo da pior parte. Passaram a ameaçar buscar meu fillho. ‘Vamos quebrar a
perna’, dizia um. ‘Queimar com cigarro’, dizia outro.
ROSE NOGUEIRA, ex-militante da Ação
Libertadora Nacional (ALN), era jornalista quando foi presa em 4 de novembro de
1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é jornalista e
defensora dos direitos humanos.
Eram mais ou menos 2 horas da manhã quando chegaram
à fazenda dos meus sogros em Nova Aurora. A cidade era pequena e foi tomada
pelo Exército. Mobilizaram cerca de setecentos homens para a operação. Eu, meu
companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do
outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o
que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval.
No dia seguinte, fomos transferidos para o Batalhão
de Fronteira de Foz do Iguaçu, onde eu e meu companheiro fomos torturados pelo
capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski. Foi pau de
arara, choques elétricos, jogo de empurrar e, no meu caso, ameaças de estupro.
Dias depois, chegaram dois caras do Dops do Rio, que exibiam um emblema do
Esquadrão da Morte na roupa, para ‘ajudar’ no interrogatório. Eu fi cava horas
numa sala, entre perguntas e tortura física. Dia e noite.
Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam
sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro
e insultos, eu abortei. Depois disso, me colocaram num quarto fechado, fiquei
incomunicável. Durante os dias em que fi quei muito mal, fui cuidada e medicada
por uma senhora chamada Olga. Quando comecei a melhorar, voltaram a me
torturar. Nesse período todo, eu fui insultadíssima, a agressão moral era
permanente. Durante a noite, era um pânico quando eles vinham anunciar que era
hora da tortura.
Quando você começava a se recompor, eles iniciavam
a tortura de novo, principalmente depois que chegaram os caras do Dops. Durante
anos, eu tive insônia, acordava durante a noite transpirando. De Foz, fomos
levados para o Dops de Porto Alegre, onde houve outras sessões de tortura, um
na frente do outro. Depois, fomos levados de volta para Curitiba, onde fiquei
na penitenciária de Piraquara. Quando fi nalmente fui para a prisão domiciliar,
que durou quatro meses, eu sofri muito, fui muito perseguida e ameaçada.
Recebia telefonemas anônimos, passava noites sem dormir.
IZABEL FÁVERO, ex-militante da
VAR-Palmares, era professora quando foi presa em 5 de maio de 1970, em Nova
Aurora (PR). Hoje, vive no Recife (PE), onde é professora de Administração da
Faculdade Santa Catarina.
Teve uma tortura que aconteceu na véspera do Sete
de Setembro. Sei que foi esse dia porque a gente escutava o ensaio das bandas.
Me levaram para uma sala com acústica de madeira. Tocava uma música de
enlouquecer. Era um som como se estivessem arranhando a parede. A música foi
aumentando cada vez mais.
Quando eu saí de lá, minha cabeça estava latejando.
Por pouco eu não enlouqueci. Lá no DOI-Codi, todo dia eu ia para o
interrogatório, e as torturas eram de todas as formas, como na cadeira do
dragão, e sempre nua. E eles ameaçavam as pessoas que a gente conhecia. Um dia
me chamaram e eu vi o Paulo [Stuart Wright] encapuzado. Reconheci-o pelo terno
que ele estava usando, que fui eu quem tinha dado para ele, e também pela voz.
Os torturadores falavam muito das presas,
ridicularizavam, gritando para você ouvir. Eram coisas libidinosas, como do
tamanho da vagina de uma pessoa que eu conhecia. Uma vez, eles me chamaram para
um interrogatório com um homem negro que diziam ser um psicólogo. Isso foi
muito tocante para mim, porque é claro que chamaram um homem negro para eu me
sentir identifi cada. Um dia, eles me chamaram no pátio e lá estava o satanás
encarnado, o capitão Ubirajara [codinome do delegado de polícia Laerte
Aparecido Calandra], apoiado num carro, e um outro ao lado dele em pé, e um bando
de homens do outro lado.
Ele me pôs para marchar na frente dele, para lá e
para cá, para lá e para cá durante um bom tempo. E os homens falando: ‘Ô negra
feia. Isso aí devia estar é no fogão. Negra horrorosa, com esse barrigão. Isso
aí não serve nem para cozinhar. Isso aí não precisava nem comer com essa
banhona, negra horrorosa’. E eu tendo de marchar. Imagine só, rebaixar o ser
humano a esse ponto...
MARIA DIVA DE FARIA era enfermeira
quando foi presa em 5 de setembro de 1973, em São Paulo (SP). Hoje, vive na
mesma cidade e é aposentada.
Ele me disse: ‘Se você sair viva daqui, o que não
vai acontecer, você pode me procurar no futuro. Eu sou o chefe, sou o Jesus
Cristo [codinome do delegado de polícia Dirceu Gravina]’. Ele falava isso e
virava a manivela para me dar choque. Ele também dizia: ‘Que militante de
direitos humanos coisa nenhuma, nada disso, vocês estão envolvidos’.
E virava a manivela. Havia umas ameaças assim:
‘Vamos prender todos os advogados de direitos humanos, colocá-los num avião e
soltar na Amazônia’. Nos outros interrogatórios, eles perguntavam qual era a
minha opção política, o que eu pensava, quem pagava os meus honorários, quais
eram os meus contatos no exterior, o que eu pensava do comunismo. Para mim, fi
cou muito claro que eles queriam atemorizar advogado de preso político.
Havia uma mudança no tom das equipes. Eram três, e
ia piorando. Durante o interrogatório da segunda equipe, eu levei uma bofetada
de um e o outro me segurou: ‘Está bravinha porque levou uma bofetada?’. E os
homens da terceira equipe diziam: ‘Saia disso, onde já se viu defender esses
caras, gente perigosíssima, não se meta nisso!’.
Eu estava formada havia menos de um ano, e
trabalhava desde o segundo ano no escritório do advogado José Carlos Dias,
defendendo presos políticos. Essa era a forma que eu tinha de resistir à
ditadura militar, foi minha opção de participação na resistência. Eu fui presa
sem nenhuma acusação, fiquei três dias lá sem saber porque estava presa.
No terceiro ou quarto dia, eu descobri o motivo:
teriam achado num ‘aparelho’ um manuscrito do Carlos Eduardo Pires Fleury, que
tinha sido banido do país e que foi meu colega e cliente no escritório. Eu não
fui das mais torturadas. Levei choque uma manhã inteira, acho que para saber se
eu tinha algum envolvimento com alguma organização clandestina e paraque os
advogados soubessem que não era fácil para quem militava.
MARIA LUIZA FLORES DA CUNHA
BIERRENBACH era advogada de presos políticos quando foi presa em 8 de novembro
de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é procuradora do
Estado aposentada.
Muitos deles vinham assistir para aprender a
torturar. E lá estava eu, uma mulher franzina no meio daqueles homens
alucinados, que quase babavam. Hoje, eu ainda vejo a cara dessas pessoas, são
lembranças muito fortes. Eu vejo a cara do estuprador. Era uma cara redonda.
Era um homem gordo, que me dava choques na vagina e dizia: ‘Você vai parir
eletricidade’.
Depois disso, me estuprou ali mesmo. Levei muitos
murros, pontapés, passei por um corredor polonês. Fiquei um tempão amarrada num
banco, com a cabeça solta e levando choques nos dedos dos pés e das mãos. Para
aumentar a carga dos choques, eles usavam uma televisão, mudando de canal,
‘telefone’, velas acesas, agulhas e pingos de água no nariz, que é o único
trauma que permaneceu até hoje.
Em todas as vezes em que eu era pendurada, eu fi
cava nua, amarrada pelos pés, de cabeça para baixo, enquanto davam choques na
minha vagina, boca, língua, olhos, narinas. Tinha um bastão com dois pontinhos
que eles punham muito nos seios. E jogavam água para o choque fi car mais
forte, além de muita porrada.
O estupro foi nos primeiros dias, o que foi
terrível para mim. Eu tinha de lutar muito para continuar resistindo.
Felizmente, eu consegui. Só que eu não perco a imagem do homem. É uma cena
ainda muito presente. Depois do estupro, houve uma pequena trégua, porque eu
estava desfalecida. Eles tinham aplicado uma injeção de pentotal, que chamavam
de ‘soro da verdade’, e eu estava muito zonza. Eles tiveram muito ódio de mim
porque diziam que eu era macho de aguentar. Perguntavam quem era meu professor
de ioga, porque, como eu estava aguentando muito a tortura, na cabeça deles eu
devia fazer ioga.
Me tratavam de ‘puta’, ‘ordinária’. Me tratavam
como uma pessoa completamente desumana. Eu também os enfrentei muito. Com certa
tranquilidade, eu dizia que eles eram seres anormais, que faziam parte de uma
engrenagem podre. Eu me sentia fortalecida com isso, me achava com a moral mais
alta.
DULCE MAIA, ex-militante da Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR), era produtora cultural quando foi presa na
madrugada de 26 de janeiro de 1969, em São Paulo (SP).Hoje, vive em Cunha (SP),
é ambientalista, dirige a ONG Ecosenso e é cogestora do Parque Nacional da
Serra da Bocaina.
Quando fui presa, minha barriga de cinco meses de
gravidez já estava bem visível. Fui levada à delegacia da Polícia Federal,
onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo
Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve
nascer’. Depois, fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde
houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que
Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos ‘refl etores’. Eles nos
mantinham acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto.
Fomos levados para o Batalhão de Polícia do
Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão,
bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à ‘tortura cientifi ca’,
numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar
mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns
fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações que
aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfi xia.
De lá, fui levada para o Hospital do Exército e,
depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu
estava muito fraca e não conseguia fi car nem em pé nem sentada. Como não tinha
colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me
roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos.
Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em
Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as
coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia.
Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei. Depois disso,
ficavam dizendo que eu era fria, sem emoção, semsentimentos. Todos queriam ver
quem era a ‘fera’ que estava ali
HECILDA FONTELLES VEIGA, ex-militante
da Ação Popular (AP), era estudante de Ciências Sociais quando foi presa, em 6
de outubro de 1971, em Brasília (DF). Hoje, vive em Belém (PA), onde é
professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Eu e meu ex-companheiro, George Duque Estrada,
fomos presos em meio a uma avalanche de prisões que tinham como alvo o PCB, de
norte ao sul do país. Só em São Paulo, em outubro de 1975, estavam detidas 96 pessoas
do partidão, dentre as quais: Lenita Yassuda, Dilea Frate, Marisa Saenz Leme,
Eleonora Freire, Sonia Morossetti, Sandra Miller, Sarita D’Ávila Mello, Zilda
Gricolli, Marinilda Marchi, Rosa Faria, Ana Maria Brandão Dias, Eugenia
Paesani, Nancy Trigueiros, Carmen Vidigal Moraes, Cristina Castro Mello, Monica
Staudacher, Nanci Marcelino, Celia Candido, Stela Brandão.
No DOI-Codi, passei a noite encapuzada, ouvindo os
gritos de um homem sendo brutalizado. O dia seguinte, soube depois, foi aquele
em que Vladimir Herzog foi torturadoaté a morte. Fui levada à sessão de
interrogatório numa sala próxima à outra onde alguém também estava sendo
interrogado e torturado. Diziam-me que era meu companheiro. Eram gritos
abafados de uma pessoa amordaçada. Achei que iam matá-lo.
Os homens que me torturavam se revezavam entre o
local onde eu estava e a sala contígua. Estavam num estado de alteração
psíquica indescritível. Eu era erguida da cadeira e jogada, nua e encapuzada,
como se fosse uma peteca, de mão em mão, no meio de xingamentos e gritaria.
Depois, fui submetida a tapas e choques elétricos. Perdi alguns dentes e todas
as minhas obturações caíram.
Como estava amamentando, o leite escorria pelo meu
corpo, o que constrangeu alguns torturadores e estimulou outros. O entra e sai
era frenético. De repente, instalou-se um silêncio sepulcral. Sobe e desce de
escadas.
Os interrogatórios foram suspensos. Na madrugada
entre 25 e 26 de outubro, agentes passavam pelos corredores perguntando se
'alguém também estava passando mal'. Pensei que algo de terrível tivesse
ocorrido com o George. Não havia sido com ele, mas com o Vladimir Herzog. Foram
provavelmente dele os gemidos que ouvi da sala contígua
MARISE EGGER-MOELLWALD, ex-militante
do Partido Comunista Brasileiro (PCB),era estudante de Ciências Sociais quando
foi presa no dia 24 de outubro de 1975, emSão Paulo (SP). Hoje, vive na mesma
cidade, é socióloga e trabalha como consultoraem gestão pública e
desenvolvimento de políticas sociais.
No domingo, 12 de novembro de 1978, fui à
rodoviária de Porto Alegre esperar uma companheira. Eram 9 horas da manhã.
Alguém, com tom amável, pediu-me os documentos. Entreguei o passaporte uruguaio
e me conduziram a um escritório. Até então, eu pensava que era um controle de
rotina. Fazia pouco que eu tinha chegado ao Brasil com meus fi lhos e, apesar
de saber das novas detenções em Buenos Aires e Montevidéu, achei que não devia
me preocupar.
Mal entrei no escritório da rodoviária, um homem
uruguaio me cumprimentou. Lembro-me dele: capitão Giannone. Havia criado uma
fama de cruel e parecia desfrutar dela. A presença do militar uruguaio junto
dos policiais brasileiros não deixava dúvidas de que se tratava de uma ação
coordenada de repressão.
Em pouco tempo, encontrei-me nua na delegacia de
Porto Alegre, com cabos elétricos nos ouvidos e nas mãos. As descargas e a
água, as descargas e a água, as descargas e a água, pensando no perigo que meus
filhos corriam e nos fi lhos desaparecidos de Sara, de María Emilia. O medo se
sente nos intervalos, quando os choques elétricos cessam; quando eles o
aplicam, você sente dor.
O verdadeiro medo é o que se sente quando essa
sessão de tortura termina e você sabe que vai começar a outra, ou quando não
começa nada, mas você está lá esperando, paralisada por essa sensação, talvez a
mais terrível que se pode sentir. Nesse momento, o que mais dói é a humilhação
de estar lá, uivando, com o corpo empapado de merda e pulando sem poder
controlar, pulando sem que a sua vontade possa impedi-lo.
O objetivo da tortura é esse: vilipendiar você como
pessoa, que seu corpo e sua vontade percam o controle e você se sinta um montão
de carne, ossos, merda, dor e medo. Não tive nenhuma informação sobre o destino
dos meus filhos até o final daquele ano, quando obtive notícias por meio de um
soldado que teve piedade de mim.
LILIAN CELIBERTI, uruguaia,
ex-militante do Partido da Vitória do Povo (PVP), era professora quando foi
sequestrada em Porto Alegre (RS), em 12 de novembro de 1978, juntamente com
seus fi lhos Camilo e Francesca e seu companheiro na época, Universindo Díaz.
Hoje, vive em Montevidéu, capital do Uruguai, onde é ativista de direitos
humanos e coordenadora da ONG feminista Cotidiano Mulher.
Era muita gente em volta de mim. Um deles me deu
pontapés e disse: ‘Você, com essa cara de fi lha de Maria, é uma fi lha da
puta’. E me dava chutes. Depois, me levaram para a sala de tortura. Pediram que
eu me despisse, eu falei que não ia tirar a roupa. O outro disse: ‘Ou você tira
ou tiramos nós’. Fiquei em dúvida entre a humilhação de ser despida por eles ou
eu mesma me despir. Foi muito humilhante ter de tirar a roupa.
Aí, começaram a me dar choques direto da tomada no
tornozelo. Eram choques seguidos no mesmo lugar. Havia um desprezo por parte
deles. Junto com a ideologia, vinha essa humilhação pelo fato de ser mulher,
como se a gente estivesse extrapolando nosso papel de mulher. O tom era de ‘por
que você não está em casa, ao invés de estar aqui? Por que você perde tempo com
coisas que não lhe dizem respeito?’.
Era como se você merecesse ser torturada porque
estava fazendo o que não devia ter feito. Um deles me perguntou: ‘Por que você
se mete com esses padres revolucionários, com esse pessoal?’. Eu tinha sido
presa junto com o Giulio Vicini, que na época era padre. A minha tortura no
Dops foi interrompida, e um dos homens disse: ‘Você foi salva pelo gongo’.
Na madrugada, fi quei sabendo que o dom Paulo
Evaristo Arns intercedeu em nosso favor. Logo nos encaminharam ao
PresídioTiradentes. A atuação de dom Paulo foi direta e imediata. Ele pediu que
fizéssemos um relato da tortura sofrida. Na semana seguinte mandou ler em todas
as igrejas de São Paulo um comunicado contendo a denúncia de nossa tortura.
YARA SPADINI trabalhava como assistente
social quando foi presa em 27 de janeiro de 1971, em São Paulo (SP). Hoje, vive
na mesma cidade, onde é professora aposentada do curso de Serviço Social da
Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
A primeira coisa que fi zeram foi arrancar toda a
minha roupa e me jogar no chão molhado. Aí, começaram os choques em tudo quanto
é lado – seio, vagina, ouvido – e os chutes. Uma coisa de louco. Passei por
afogamento várias vezes. Os caras me enfiavam de capuz num tanque de água suja,
fedida, nojenta. Quando retiravam a minha cabeça, eu não conseguia respirar,
porque aquele pano grudava no nariz.
Um dos torturadores ficou tantas horas em pé em
cima das minhas pernas que elas ficaram afundadas. Demorou um tempão para se
recuperarem. Meu corpo fi cou todo preto de tanto chute, de tanto ser pisada.
Fui para o pau de arara várias vezes. De tanta porrada, uma vez meu corpo fi
cou todo tremendo, eu estrebuchava no chão. Eles abusavam muito da parte
sexual, com choques nos seios, na vagina... passavam a mão.
Também faziam acareações minhas com um companheiro
do movimento estudantil, o Pedro Eugênio de Toledo. Eles obrigavam a gente a se
encostar nas partes sexuais e a torturar um ao outro. Tínhamos que por a mão no
órgão um do outro para receber choques. Eles também faziam a gente se encostar
como se fôssemos ter uma relação, para os dois serem atingidos pelo choque.
Fiquei quase um mês sendo torturada diariamente.
Em uma outra vez, eles simularam a minha morte. Me
acordaram de madrugada, saíram me arrastando, dizendo que iam me matar. Me
puseram dentro de um camburão, onde tinha corda, pá, um monte de ferramentas.
Deram muitas voltas e depois pararam num lugar esquisito. Aí, soube que não iam
me matar, pois me disseram que eu ia ser colocadanuma solitária e que iam
espalhar o boato que eu tinha morrido.
MARIA DO SOCORRO DIÓGENES,
ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era
professora quando foi presa no Recife (PE), em 4 de abril de 1972. Hoje, vive
em São Paulo (SP), onde é supervisora de ensino da rede estadual.
[...] Fui conduzida para uma casa [...] em
Petrópolis. [...] O dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me
pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me
largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça.
[...] Fui várias vezes espancada e levava choques elétricos na cabeça, nos pés,
nas mãos e nos seios.
A certa altura, o dr. Roberto me disse que eles não
queriam mais informação alguma; estavam praticando o mais puro sadismo, pois eu
já havia sido condenada à morte e ele, dr. Roberto, decidira que ela seria a
mais lenta e cruel possível, tal o ódio que sentia pelos ‘terroristas’. [...]
Alguns dias depois, [...] apareceu o dr. Teixeira, oferecendo-me uma saída
‘humana’: o suicídio. [...] Aceitei e pedi um revólver, pois já não suportava
mais. Entretanto, o dr. Teixeira queria que o meu suicídio fosse público.
Propôs me então que eu me atirasse embaixo de um
ônibus, como eu já fi zera. [...] No momento em que deveria atirar-me sob as
rodas de um ônibus, agacheime e segurei as pernas de um deles, chorando e
gritando. [...] Por não ter me matado, fui violentamente castigada: uma semana
de choques elétricos, banhos gelados de madrugada, ‘telefones’, palmatórias. Espancaram-me
no rosto até eu fi car desfi gurada. [...] O ‘Márcio’ invadia minha cela para
‘examinar’ meu ânus e verifi car se o ‘Camarão’ havia praticado sodomia comigo.
Esse mesmo ‘Márcio’ obrigou-me a segurar seu pênis,
enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas
vezes pelo ‘Camarão’ e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua,
ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros [...].
INÊS ETIENNE ROMEU, ex-militante da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era bancária quando foi presa em São
Paulo (SP), em 5 de maio de 1971. Hoje, vive em Belo Horizonte (MG). Recebeu o
Prêmio Nacional de Direitos Humanos 2009, na categoria Direito à Memória e à
Verdade.
Fui levada para o Dops, onde me submeteram a
torturas como cadeira do dragão e pau de arara. No pau de arara, davam choques
em várias partes do corpo, inclusive nos genitais. De violência sexual, só não
houve cópula, mas metiam os dedos na minha vagina, enfi avam cassetete no ânus.
Isso, além das obscenidades que falavam. Havia muita humilhação.
Eles tiravam sarro ao mesmo tempo que nos batiam. E
eu fui muito torturada, juntamente com o Gustavo [Buarque Schiller], porque
descobriram que era meu companheiro. E ele fazia parte da direção da
VAR-Palmares. A pior coisa que existe é ver um companheiro ser torturado. Uma
vez, eles simularam que iam me degolar. Pegaram uma facona, saíram comigo e
disseram para o Gustavo: ‘É a última vez que você vai vê-la’. Aí, eles saíram
comigo com aquela faca na garganta e me botaram numa kombi.
Depois, pararam o carro e fi caram discutindo o que
fazer comigo. Acabaram me deixando de volta no presídio. Foi uma encenação, mas
achei que estava indo ser morta. Isso me deixou com trauma durante muitos anos.
Eu não conseguia mexer com faca grande na cozinha... No total, fi quei presa
durante um ano e meio.
IGNEZ MARIA RAMINGER, ex-militante da
VAR-Palmares, era estudante de Medicina Veterinária quando foi presa em 5 de
abril de 1970, em Porto Alegre (RS). Hoje, vive na mesma cidade, onde é técnica
da Secretaria Municipal de Saúde.
Cheguei em casa depois da minha segunda prisão e
meu filho Aritanã Machado Dantas, então com nove anos, não estava lá. Me
explicaram que a tia e a avó dele tinham passado para pegá-lo. Liguei para o
meu sogro, o general aposentado Altino Rodrigues Dantas, informando que iria
buscar meu fi lho.
Fui aconselhada a ir buscá-lo no outro dia. Na
manhã seguinte, informou que a pedido de sua mulher, Odete, tinha entrado com
processo de destituição de pátrio poder contra mim e meu companheiro, Altino
Rodrigues Dantas Júnior.
Em 27 de dezembro de 1974, perdi a tutela do meu
filho por uma sentença em primeira instância proferida pelo juiz Luciano Ferreira
Leite. Estava no oitavo mês de gravidez do meu segundo filho, fruto de um novo
relacionamento e, em decorrência da forte emoção, perdi o bebê. Os advogados de
acusação foram Paulo da Costa Manso, Murilo da Costa Manso e Cássio da Costa
Carvalho.
No meio judiciário, essa sentença foi considerada
inédita na história do Direito. Era a primeira vez que por razões ideológicas,
e não pelos dispositivos do código civil, se cancelava o pátrio poder sobre um
menor. Essa luta durou dois anos. Meu fi lho fi cou com os avós, e eu tinha
restrições totais de encontrá-lo.
O advogado da avó do meu filho dizia que ela não
podia me deixar entrar em sua casa porque eu era uma terrorista. Durante seis
meses, eu tinha autorização de ver meu filho da seguinte forma: eu subia com
meu advogado até a porta do apartamento e ficávamos no hall; eu ficava sentada
no chão, brincando com ele durante uma hora. É muito importante ressaltar o
papel dos advogados nesse período.
O escritório era do Iberê Bandeira de Melo e
participaram de todo o processo os advogados Pedro Paulo Negrini e Marco
Antônio Nahum. Depois de seis meses, conseguimos entrar no apartamento. Então,
ficávamos na sala eu, os advogados e a avó do meu filho, porque meu sogro tinha
se suicidado no meio desse processo. Consegui reaver a guarda do meu fi lho em
10 de setembro de 1976, numa sentença de segunda instância.
LENIRA MACHADO DANTAS, ex-militante
da Ação Popular (AP) e do Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT),
trabalhava como analista de projetos quando foi presa pela segunda vez, em 3 de
abril de 1974, em São Paulo (SP). Hoje, vive entre São Paulo e Brasília, onde
trabalha como consultora do Ministério do Turismo.
Estávamos na nossa casa em Atibaia. Éramos eu, meu
marido e meus filhos. A polícia cercou a casa, arrebentou o portão e bateu na
porta. Meu marido estava dormindo. Mandaram chamá-lo e queriam levá-lo para
prestar esclarecimento, mas ele pegou um fuzil e disse que não ia. Quando ele
saiu na porta, a bala já bateu no peito dele, mas ele ainda estava vivo.
Quando caiu, deram trinta, quarenta balas no corpo.
O último foi na cabeça. Foi aí que ele morreu, e todos os homens entraram na
casa. Eles diziam: ‘Mata ela e os fi lhos dela, mata essa puta’. Saquearam a
casa toda. Lá era um aparelho, tinha todo o material da organização e muitas
armas.
Quando eu cheguei na delegacia, o pau comeu solto:
arrancaram os meninos de mim, me jogaram no chão, pisaram em cima de mim, eu
rolava no chão toda ensanguentada. Aí, começaram a vir os homens da Oban. Era
soco, pontapé, batiam no meu quadril. Apanhei tanto na boca que a dentadura
enganchou na gengiva.
Minha boca fi cou toda inchada, cheia de dentes
quebrados. De madrugada, me levaram para São Paulo, para a Operação
Bandeirante, onde eu fiquei 23 dias apanhando. Era choque, choque, choque todo
santo dia. Eu me urinava toda, e eles berravam: ‘Essa mulher tá podre, tira
essa mulher fedorenta daqui’. Minha vagina ficou toda arrebentada por causa dos
choques. Eu tive de fazer uma operação em Cuba, onde levei noventa pontos. Meu
útero e minha bexiga fi caram para fora, eu estou viva por um milagre.
Também levei muita porrada, muito soco na bunda.
Fiquei completamente arrebentada, foi muito sofrimento. Nesses dias, eu não
conseguia comer, porque, além da comida parecer ‘resto’, cheia de ponta de
cigarro e palito, eu estava com a boca inchada. Então, só tomava uma xícara de
café. Tinha também xingamento dos nomes mais pesados. De vez em quando, vinham
e davam uma bofetada na nossa cara.
DAMARIS LUCENA, ex-militante da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), era feirante quando foi presa em 20 de
fevereiro de 1970, em Atibaia (SP). Hoje, vive em São Paulo (SP).
Minha filha nasceu em setembro de 1976, durante o
governo Geisel. Eu tive de fazer o parto num hospital privado, fiz uma
cesariana, sofri muita pressão. Eles diziam que tinha de fazer como na
Indonésia: matar os comunistas até a terceira geração para eles não existirem
mais. E depois, a entrega da minha filha foi muito difícil. Eu a entreguei para
a minha sogra, pois minha família estava toda no exílio. Foi a pior coisa da
minha vida, a mais dolorida.
A separação de uma criança com três meses é muito
dura para uma mãe, é horrível. É uma coisa que nunca se supera. É um buraco. De
toda a minha história, essa é a mais dramática. A minha gravidez resultou do
primeiro caso de visita íntima do Rio de Janeiro. Meu marido estava preso na
ilha Grande e, quando da passagem do governo Médici para o Geisel, havia uma
reivindicação para que nos encontrássemos.
Fazia cinco anos que não nos víamos. Foi nessa
conjuntura que eu fi quei grávida. A nossa prisão foi muito violenta. Fomos
levados para o DOI-Codi, onde fomos muito torturados. As torturas foram tudo
que você pode imaginar. Pau de arara, choque, violência sexual, pancadaria
generalizada. Quando chegamos lá, tinha um corredor polonês. Todas as mulheres
que passaram por ali sofreram com a coisa sexual. Isso era usado o tempo todo.
JESSIE JANE, ex-militante da Ação
Libertadora Nacional (ALN), era estudante secundarista quando foi presa em 1o
de julho de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). Hoje, vive na mesma cidade, onde é
professora do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Dois homens entraram em casa e me sequestraram,
juntamente com meu marido, o jornalista Paulo Markun. No DOI-Codi de São Paulo,
levei choques nas mãos, nos pés e nas orelhas, alguns tapas e socos, sendo
inquirida sobre colegas de universidade e suas supostas ligações com o PCB.
Durante o tempo em que isso aconteceu, eu usava um
capuz preto que sufocava. Num determinado momento, eles extrapolaram e, rindo,
puseram fogo nos meus cabelos, que passavam da cintura. Imediatamente retirei o
capuz, apaguei o fogo com ele e encarei meu algoz, um senhor com rosto de pai
de família e uns 60 anos de idade. Os torturadores auxiliares perguntaram: ‘E
agora, acabamos de vez com ela?’.
Tornei a olhar para o mais velho nos olhos e falei:
‘Isso que vocês estão fazendo comigo é um absurdo, sou católica e vou batizar
minha filha no domingo’. E perguntei: ‘Você acredita em Deus? Você tem
filhos?’.
Os mais jovens avançaram sobre mim, e o mais velho
disse: ‘Deixa’. Logo depois, fui jogada numa cela com outras mulheres.
Lembro-me de uma camponesa que estava com o rosto desfigurado pela pancadaria.
Ela não conhecia ninguém ali, nem sequer sabia o que era comunismo.
Foi parar lá porque tinha se relacionado
amorosamente com um militante. Ao ver aquilo e ouvir o relato das outras
presas, muitas estupradas por vários homens e objetos, como garrafas e pedaços
de pau, fiquei ainda mais apavorada.
Ninguém se lembrou de mim por um dia inteiro e, na
manhã do domingo, o carcereiro me disse: ‘Tire o macacão e vista sua roupa’. E
saí de lá ao lado do Paulo. Pensei que seria punida pela minha ousadia de
encarar o torturador.
Mas não foi o que aconteceu. Os homens do Exército
nos levaram direto para a igreja onde aconteceria o batizado. No final, meu pai
convidou todos para ir à nossa casa ‘comemorar’. Lá, os homens deixaram as
metralhadoras no chão da sala, almoçaram, beberam (muito) whisky e vinho.
Paulo contou ao pai dele o que estava acontecendo e
listou todos os nomes que estavam marcados. No final da tarde, retornamos ao
DOI-Codi, levando cobertores, sabonetes, chocolates e objetos de uso pessoal.
Naquele dia teve festa na cadeia.
DILEA FRATE, ex-militante do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), era estudante de Jornalismo quando foi presa no dia
17 de outubro de 1975, em São Paulo (SP). Hoje, vive no Rio de Janeiro (RJ),
onde é jornalista e escritora.
Fizeram de tudo comigo: cadeira do dragão, pau de
arara, telefone, palmatória, choque elétrico na vagina, nos seios, nos braços,
nas orelhas. No pau de arara, a gente ficava pendurado pelas pernas, feito um
peru no pau, num forno.
Na cadeira do dragão, jogavam água fria e depois
davam choque. Havia também um tipo de corredor em que andávamos vestindo um
capuz. Não sabíamos onde estávamos, e as paredes eram todas úmidas. A sensação
era de que a gente estava dentro de um túnel, indo cada vez mais fundo, mas não
sabia onde ia parar.
A gente não sabia se era dia ou noite. Enquanto
isso, eles gritavam para contar logo, ‘se não, não vai sair daqui’. Ao mesmo
tempo, ouviam-se os gemidos das pessoas, que não sabíamos de onde vinham.
Nessas horas, o lado moral pesa mais que o físico. Por conta das torturas nas
orelhas, fi quei com problemas no ouvido.
Aí, me levaram para o Hospital Militar, mas lá eu
não sabia se ia ser atendida direito ou não. Para me torturar, disseram: ‘Ela
vai ser operada’, sendo que eu não tinha do que ser operada. Era uma forma de
me agredir. Havia também as ameaças de morte, xingamentos, como ‘sua puta, por
que esta metida nisso?’.
O fato de estarmos sempre com a mesma roupa também
era uma violência. Não tínhamos condições de trocar, então a gente fi cava se
sentindo mal, suja, o que é feito de propósito para ver se a gente entregava
alguma coisa para poder ir embora. Como sequela, a gente passa anos sentindo
aquela mesma sensação vivenciada. Quando fazia frio, eu sentia a sensação dos
fios nos dedos ou a picada do choque no seio, na vagina...
ELZA LOBO, ex-militante da Ação
Popular (AP), trabalhava na Secretaria da Fazenda quando foi presa em 10 de
novembro de 1969, em São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é
Ouvidora da Secretaria de Estado da Saúde.
Acordei no chão da cela com um deles me chutando.
Comecei a ser arrastada pelo corredor cheio de policiais e levada escada acima.
Eles eram muitos. Um deles começou a falar que era meu noivo, que ia casar
comigo. De repente, os outros começaram a passar a mão em mim, no meu corpo,
nos meus seios, coxas – aquele monte de homens – e começaram a cantar a marcha
nupcial.
Quando abriram a porta, tinham montado uma sala de
tortura no quartel de Ribeirão Preto, com pau de arara, choque elétrico, e
aquele monte de homens gritando, me batendo. O homem que disse que ia casar
comigo rasgou a minha roupa.
Me jogaram água, o bombeiro me amarrou na cadeira e
começou a sessão de choque elétrico praticamente a noite inteira, e eu nua,
apanhando. Eram choques nos seios, no ventre, na vagina, dentro do ouvido...
Era um pesadelo. Era um monte de homens, de 30 a 40 anos, todo o pessoal da
Oban que tinha vindo para Ribeirão.
Três dias depois fui levada para São Paulo com meus
companheiros de organização. Durante a viagem, o torturador ia me assediando.
Ele dizia que queria trepar comigo e que a gente ia virar presunto na estrada.
Na Oban nós já chegamos apanhando, os meninos foram para um lado e eu subi para
uma cela minúscula com oito mulheres. Depois voltamos para Ribeirão. Quando chegamos
no quartel, foi um massacre.
Era dia e noite gente caindo; os padres, a irmã
Maurina Borges da Silveira... Me lembro de quando ela chegou na cela. Eu estava
de bruços porque estava muito estraçalhada e pensei: ‘Meu deus, o que essa
freira está fazendo aqui?’. Ela foi torturada e assediada. Eu sou testemunha da
cena. O capitão Cirilo, do Exército de Pirassununga, tentando agarrá-la,
passando a mão nela.
A repressão aqui foi tão grande que a Igreja
excomungou os dois delegados de Ribeirão, Miguel Lamano e Renato Ribeiro
Soares. Não sei nem como eu fi quei viva. Tiveram de tirar a gente do quartel
porque qualquer soldado se sentia no direito de ir no banheiro com a gente,
assediar. Eles falavam assim: ‘Ô boneca terrorista, vamos jogar dados e fazer a
fila para ver quem será o primeiro’.
ÁUREA MORETTI, ex-militante das
Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), era estudante de enfermagem
quando foi presa em 18 de outubro de 1969, em Ribeirão Preto (SP). Hoje, vive
na mesma cidade, onde é enfermeira da Secretaria Municipal de Saúde.
Um dia, eles me levaram para um lugar que hoje eu
localizo como sendo a sede do Exército, no Ibirapuera. Lá estava a minha fi lha
de um ano e dez meses, só de fralda, no frio. Eles a colocaram na minha frente,
gritando, chorando, e ameaçavam dar choque nela.
O torturador era o Mangabeira [codinome do escrivão
de polícia de nome Gaeta] e, junto dele, tinha uma criança de três anos que ele
dizia ser sua fi lha. Só depois, quando fui levada para o presídio Tiradentes,
eu vim a saber que eles entregaram minha fi lha para a minha cunhada, que a
levou para a minha mãe, em Belo Horizonte.
Até depois de sair da cadeia, quase três anos
depois, eu convivi com o medo de que a minha fi lha fosse pega. Até que eu
cumprisse a minha pena, eu não tinha segurança de que a Maria estava salva.
Hoje, na minha compreensão feminista, eu entendo que eles torturavam as
crianças na frente das mulheres achando que nos desmontaríamos por causa da
maternidade.
Fui presa e levada para a Oban. Sofri torturas no
pau de arara, na cadeira do dragão, levei muito soco inglês, fui pisoteada por
botas, tive três dentes quebrados. Éramos torturadas completamente nuas. Com o
choque, você evacua, urina, menstrua. Todos os seus excrementos saem.
A tortura era feita sob xingamentos como ‘vaca’,
‘puta’, ‘galinha’, ‘mãe puta’, ‘você dá para todo mundo’... Algumas mulheres
sofreram violência sexual, foram estupradas. Mas apertar o peito, passar a mão
também é tortura sexual.
E isso eles fizeram comigo. Eles também colocaram
na minha vagina um cabo de vassoura com um fio aberto enrolado. E deram choque.
O objetivo deles era destruir a sexualidade, o desejo, a autoestima, o corpo.
ELEONORA MENICUCCI DE OLIVEIRA,
ex-militante do Partido Operário Comunista (POC), era estudante de Sociologia e
professora do ensino fundamental quando foi presa, em 11 de julho de 1971, em
São Paulo (SP). Hoje, vive na mesma cidade, onde é pró-reitora de extensão e
cultura e professora titular de saúde coletiva da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp).
Logo que fui levada ao DOI-Codi/RJ – depois de três
dias no Dops – recebi na cela onde estava, um pouco antes de a tortura começar,
uma estranha ‘visita’: Amílcar Lobo, que se disse médico. Ele tirou minha
pressão e perguntou se eu era cardíaca.
Ou seja, preparou-me para a tortura para que esta
fosse mais efi caz. Os guardas que me levavam, frequentemente encapuzada,
percebiam minhafragilidade e constantemente praticavam vários abusos sexuais
contra mim. Oschoques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais
intensos. Me senti desintegrar: a bexiga e os esfíncteres sem nenhum controle.
‘Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo... Eu não estou aqui...’,
pensei eu.
O filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa
percorria meu corpo... ‘E se me colocam a cobra, como estão gritando que
farão?’. Perdi os sentidos, desmaiei. Em outros momentos, era levada para junto
de meu companheiro quando ele estava sendo torturado. Inicialmente, fizeram-me
acreditar que nosso fiho, de três anos e meio, havia sido entregue ao Juizado
de Menores, pois minha mãe e meus irmãos estariam também presos.
Foi fácil cair nessa armadilha, pois vi meus três
irmãos no DOI-Codi/RJ. Sem nenhuma militância política, foram sequestrados em
suas casas, presos e torturados. O barulho das chaves nas mãos de algum soldado
que vinha abrir alguma cela era aterrorizante. ‘Quem será dessa vez?’.
Quando passavam por minha cela e seguiam adiante,
fi cava aliviada. Alívio parcial, pois pensava: ‘Quem estará indo para a sala
roxa dessa vez?’. Esse farfalhar de chaves me acompanha desde então. Numa
madrugada, fui retirada da cela, levada para o pátio, amarrada, algemada e
encapuzada. Aos gritos, diziam que eu seria executada e levada para ser
‘desovada’ como num ‘trabalho’ do Esquadrão da Morte. Acreditei. Naquele
momento, morri um pouco. Em silêncio, aterrorizada, urinei-me. Aos berros, eles
riram e me levaram de volta à cela. Parece que nessa noite não havia muito
‘trabalho’ a fazer.
CECÍLIA COIMBRA, ex-militante do
Partido Comunista Brasileiro (PCB), era estudante de Psicologia quando foi presa
em 28 de agosto de 1970, no Rio de Janeiro (RJ). Hoje, vive na mesma cidade,
onde foi fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais, do qual é presidente. É também
professora de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Cheguei na Oban e a violência começou no
interrogatório, com choque elétrico. Quando eu vi o pau de arara, não reconheci
o que era porque estava em choque. Vi um copo cheio de uma substância branca e
achei que era açúcar, para tomar com água na hora do nervoso. Mas era sal, para
pôr nas feridas. Eles faziam piadas sobre o corpo das mulheres, se era feio,
jovem, velho, gozavam dos defeitos. Era uma mesquinharia muito grande.
Eles abusam, violentam, de uma maneira ou outra,
humilham, tornam objeto. Eles faziam a gente se sentir uma porcaria. Também
faziam uma certa gozação, como se eu tivesse me metido nisso sem saber o que
era. Eles tinham muito prazer na tortura. Não me pareceu que eles faziam por
obrigação. Havia o Ustra [coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra], que era o
mais terrível, porque vinha com uma conversinha, com uma diplomacia: ‘Minha fi
lha, como você vai se meter numa coisa dessas, você é de uma família boa, vai
prejudicar os seus fi lhos por essa coisa de comunismo’.
E, de repente, inesperadamente, ele lançava uma
bofetada. Lá da minha cela, eu conseguia ver que eles tinham uma cachorrada no
pátio. Eles masturbavam as cadelas, as excitavam, e elas uivavam, acho que de
prazer e medo. Era brutal. Eu tinha vontade de vomitar. Uma vez, o torturador
“Jesus Cristo” [codinome do delegado de polícia Dirceu Gravina] saiu de um
interrogatório e foi para o meu. Ele estava muito nervoso e falou: ‘Você é
psicóloga, né, acho que vou precisar do seu auxílio.
Eu estou descontrolado, chego em casa e arrebento
tudo, bato na minha mulher’. Depois da Oban, fui para o Dops e para o
Tiradentes, onde a coisa foi ficando mais de tortura psicológica e não física.
Mas sempre com aquele horror de saber que a qualquer momento a gente poderia
voltar para a Oban.
LÚCIA COELHO, ex-militante do Partido
Operário Comunista (POC), era professora da Faculdade de Medicina da USP quando
foi presa em 15 de julho de 1971, em São Paulo (SP), juntamente com seu marido
Ruy Coelho, vice-diretor da Faculdade de Filosofia da USP. Hoje, vive na mesma
cidade, é psicóloga e presidente da Sociedade Rorschach de São Paulo.
Fomos levados diretamente para a Oban. Tiraram o
César e o [Carlos Nicolau] Danielli do carro dando coronhadas, batendo. Eu vi
que quem comandava a operação do alto da escada era o Ustra [coronel reformado
do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra]. Subi dois degraus e disse: ‘Isso
que vocês estão fazendo é um absurdo’.
Ele disse: ‘Foda-se, sua terrorista’, e bateu no
meu rosto. Eu rolei no pátio. Aí, fui agarrada e arrastada para dentro. A
primeira forma de torturar foi me arrancar a roupa. Lembro-me que ainda tentava
impedir que tirassem a minha calcinha, que acabou sendo rasgada. Começaram com
choque elétrico e dando socos na minha cara.
Com tanto choque e soco, teve uma hora que eu
apaguei. Quando recobrei a consciência, estava deitada, nua, numa cama de lona
com um cara em cima de mim, esfregando o meu seio. Era o Mangabeira [codinome
do escrivão de polícia de nome Gaeta], um torturador de lá. A impressão que eu
tinha é de que estava sendo estuprada. Aí começaram novas torturas. Me
amarraram na cadeira do dragão, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no
umbigo, no seio, na boca, no ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se
esfregavam em mim, se masturbavam em cima de mim.
A gente sentia muita sede e, quando eles davam
água, estava com sal. Eles punham sal para você sentir mais sede ainda. Depois
fui para o pau de arara. Eles jogavam coca-cola no nariz. Você fi cava nua como
frango no açougue, e eles espetando seu pé, suas nádegas, falando que era o
soro da verdade. Mas com certeza a pior tortura foi ver meus fi lhos entrando
na sala quando eu estava na cadeira do dragão.
Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques.
Quando me viu, a Janaína perguntou: ‘Mãe, por que você está azul e o pai verde?’.
O Edson disse: ‘Ah, mãe, aqui a gente fica azul, né?’. Eles também me diziam
que iam matar as crianças. Chegaram a falar que a Janaína já estava morta
dentro de um caixão.
MARIA AMÉLIA DE ALMEIDA TELES,
ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), era professora de educação
artística quando foi presa em 28 de dezembro de 1972, em São Paulo (SP). Hoje,
vive na mesma cidade, é diretora da União de Mulheres de São Paulo e integra a
Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Recebeu o Prêmio
Nacional de Direitos Humanos 2008, na categoria Defensores de Direitos Humanos.
De tudo que eu passei, o pior foi ter assistido à
tortura de Odijas [Carvalho de Souza]. Eles abriram a porta da sala de tortura
e me fi zeram sentar ali do lado para ver. Eram muitos homens. Teve muita
porrada: socos, pontapés, palmatória... enfi aram coisas no ânus dele. Isso
durou o dia todo, a madrugada inteira, e ele começou a urinar e a vomitar
sangue.
Quando chegou no hospital, oito dias depois, estava
com todos os órgãos destruídos e morreu ali. Durante o dia, eles me deixavam
sentada numa cadeira dura, numa sala de expediente do Dops, no caminho para a
sala de tortura e para as celas. Eles passavam por ali o tempo todo, tinha
muito assédio, puxavam meu cabelo, falavam coisas.
Na primeira semana, eu não fui torturada porque
estava tudo concentrado no Odijas e nos demais presos, que eram da direção do
PCBR. Eu era uma desconhecida da repressão e muito menina, tinha pouco mais de
18 anos. Mas quando passavam por mim, diziam: ‘Amanhã vai ser você, mas aí vai
ser diferente’. E diziam coisas nojentas sugerindo que haveria violência
sexual. Teve um dia que eu fui interrogada pelo Miranda, que era o chefão dos
torturadores.
Eu apanhei de palmatória nas nádegas, mãos, pés...
Numa das ameaças de violência sexual, o delegado me chamou, disse que eu estava
muito magra e perguntou se eu estava trepando muito, pois essa era a melhor
maneira de emagrecer. E disse que ele poderia me alimentar bem, me engordar e
depois me faria emagrecer com a dieta do sexo.
sso tudo aconteceu no Dops do Recife. Depois eu fui
levada para o quartel do Derby, onde também foi muito pesado, porque não tinha
instalação para presas. Então, ficamos três mulheres numa cela exposta, sem
cortina, com soldados passando e fazendo gracejos. Em 1974, quando eu já estava
solta, fui sequestrada pelo Cenimar, onde fi quei 24 horas encapuzada numa
cela.
LYLIA GUEDES, ex-militante do Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), era estudante secundarista quando
foi presa em 31 de janeiro de 1971 na cidade de Paulista (PE). Hoje, é
professora da Universidade Federal do Mato Grosso e vive em Brasília (DF), onde
coordena a gerência indígena do Ministério do Meio Ambiente.
Minha segunda prisão foi quando eu estava a caminho
do Araguaia. Saí de São Paulo, de ônibus, junto com a Elza Monnerat, que era
dirigente do PCdoB. Quando chegamos a Marabá, ela me levou para um hotel.
Quando vimos que o Exército estava na cidade, ela me deu a instrução para
voltar para São Paulo, mas foi tarde demais.
O hotel já estava cercado e eu fui presa lá, onde
passei a noite. Depois me levaram para o quartel e, de lá, para Belém, Brasília
e São Paulo. Comecei a ser mais torturada em Brasília, no PIC [Pelotão de
Investigações Criminais], porque antes eles não tinham muitas informações a meu
respeito. Lá estava lotado de gente, a cela era imunda, cheia de baratas.
Para o interrogatório, eu ia encapuzada, e eles
gritando. E tinha pancadaria, ameaças, choque. Eles também me humilhavam muito
por eu ser japonesa. O meu maior medo era voltar para São Paulo, porque aqui eu
sabia que a barra ia pesar.
Quando eu voltei, dois meses depois de ser presa,
fui direto para a Oban. Eles me torturaram mais pelo ódio que sentiam do que
para obter informações. Eles sabiam que eu não tinha mais informação ‘quente’
para oferecer. Passei por muita pancadaria, choque, xingamento. Diziam que eu
era uma traidora, que o Brasil tinha sido generoso com a minha família, que eu
devia estar ajoelhada beijando a bandeira.
RIOKO KAYANO, ex-militante do Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), era estudante de Letras quando foi presa em 14 de
abril de 1972, em Marabá (PA). Hoje, vive em São Paulo (SP) e é funcionária
aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Eu e meu marido, Dermi Azevedo, militávamos com os
padres dominicanos, em São Paulo. Em 15 de janeiro de 1974, um dia após a
prisão do Dermi, fui pega. Eu tinha saído atrás de ajuda para ele e acabei
sendo presa no meu local de trabalho. Foi um terror.
Quando abri a porta, vi cinco homens armados com
metralhadora me esperando. Depois de rodar horas pela cidade com os policiais,
fui levada para a sede do Dops. Quando cheguei lá, por volta da meia-noite,
encontrei meu fi lho, Carlos Alexandre, que na época tinha dois anos de idade,
e a moça que cuidava dele. Me levaram imediatamente para a sala de tortura, e
era o delegado Fleury que estava me esperando. Já era tarde da noite e o Fleury
fi cou irritado de saber que meu filho estava ali.
Então, ele saiu para resolver o que fazer com o
menino. Eu acabei não sendo torturada e, depois, soube que meu fi lho foi
levado para a casa da minha sogra. Apesar de não ter sofrido tortura física,
sofri muita violência psicológica. Fui colocada numa solitária, revistavam a
cela com cachorros e faziam chacota de mim. Como eu era muito magra e tinha
pouco seio, eles perguntavam como eu tinha conseguido amamentar com tão pouco
peito.
Mas isso de uma maneira muito escrachada. Eles também
falavam que a gente tinha doutrinado nosso fi lho. Tempos depois eu fi quei
sabendo que quando foram me prender em casa, encontraram meu fi lho e a babá.
Os homens passaram o dia lá. Mandaram que os dois ficassem quietos no sofá, mas
como meu menino começou a chorar, o cara fi cou nervoso e deu um tapa tão forte
na boca do meu fi lho que os lábios dele se cortaram. Eu fi quei 43 dias presa,
e o Dermi fi cou quatro meses, sendo muito torturado. Quando saiu de lá, estava
muito deprimido. Nossa família fi cou desestruturada. Isso afetou muito a vida
do meu filho, que se fechou nele mesmo e fi cou com sequelas. Ele passou a ser
uma criança superfechada e hoje tem fobia social.
DARCY ANDOZIA trabalhava como
secretária quando foi presa em 15 de janeiro de 1974, em São Paulo (SP). Hoje,
vive na mesma cidade e é aposentada.
Fomos colocadas na solitária, onde ficamos por três
meses, sendo tiradas apenas para sermos interrogadas sob tortura. Era choque
elétrico, pau de arara, espancamento, telefone, tortura sexual. Eles usavam e
abusavam. Só nos interrogavam totalmente nuas, juntando a dor da tortura física
à humilhação da tortura sexual.
Eles aproveitavam para manusear o corpo da gente,
apagar ponta de cigarro nos seios. No meu caso, quando perceberam que nem a tortura
física nem a tortura sexual me faziam falar, me entregaram para uns policiais
que me levaram, à noite, de olhos vendados, para um posto policial afastado, no
meio de uma estrada.
Lá, eu fui torturada das sete da noite até o
amanhecer, sem parar. Pau de arara até não conseguir respirar, choque elétrico,
espancamento, manuseio sexual. Eles tinham um cassetete cheio de pontinhos que
usavam para espancar os pés e as nádegas enquanto a gente estava naquela
posição, de cabeça para baixo.
Quando eu já estava muito arrebentada, um
torturador me tirou do pau de arara. Eu não me aguentava em pé e caí no chão.
Nesse momento, nessa situação, eu fui estuprada. Eu estava um trapo.
Não parava em pé, e fui estuprada assim pelo
sargento Leo, da Polícia Militar. De madrugada, eu percebi que o sol estava
nascendo e pensei: se eu aguentar até o sol nascer, vão começar a passar carros
e vai ser a minha salvação. E realmente aconteceu isso. Voltei para a solitária
muito machucada.
A carcereira viu que eu estava muito mal e chamou a
médica da penitenciária. Eu nunca mais vou esquecer que, na hora que a médica
me viu jogada lá, ela disse: ‘Poxa, menina, não podia ter inventado isso outro
dia, não? Hoje é domingo e eu estava de saída com meus fi lhos para o sítio’.
Depois disso, eles passavam noites inteiras me descrevendo o que iam fazer com
a minha menina de quatro meses.
‘Você é muito marruda, mas vamos ver se vai
continuar assim quando ela chegar Estamos cansados de trabalhar com adulto, já
estudamos todas as reações, mas nunca trabalhamos com uma criança de quatro
meses. Vamos colocá-la numa banheirinha de gelo e você vai fi car algemada
marcando num relógio quanto tempo ela leva para virar um picolé.
Mas não pense que vamos matá-la assim fácil, não.
Vocês vão contribuir para o progresso da ciência: vamos estudar as reações, ver
qual vai ser a reação dela no pau de arara, com quatro meses. E quanto ao
choque elétrico, vamos experimentar colocando os eletrodos no ouvido: será que
os miolos dela vão derreter ou vão torrar? Não vamos matá-la, vamos quebrar
todos os ossinhos, acabar com o cérebro dela, transformá-la num monstrinho.
Não vamos matar você também não. Vamos entregar o
monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter se
transformado nisso’. Depois disso, me jogavam na solitária. Eu quase
enlouqueci. Um dia, eles me levaram para uma sala, me algemaram numa cadeira e,
na mesa que estava na minha frente, tinha uma banheirinha de plástico de dar
banho em criança, cheia de pedras de gelo.
Havia o cavalete de pau de arara, a máquina do
choque, e tinha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente.
Eles disseram: ‘Pegamos sua menina,ela já vai chegar e vamos ver se você é
comunista marruda mesmo’. Medeixaram lá, olhando para os instrumentos de
tortura, e, de vez em quando, passava um torturador falando: ‘Ela já está
chegando’.
E repetia algumas das coisas que iam fazer com ela.
O tempo foi passando e eles repetindo que a menina estava chegando. Isso durou
horas e horas. Depois de um tempo, eu percebi que tinham passado muitas horas e
que era blefe.
GILSE COSENZA, ex-militante da Ação
Popular (AP), era recém formada em Serviço Social quando foi presa em 17 de
junho de 1969, em Belo Horizonte (MG). Hoje, vive na mesma cidade, onde é
assistente social aposentada.
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