Por considerar pertinente, principalmente quando minha postagem abaixo é sobre a fome no mundo, reproduzo aqui o artigo do pensador Leonardo Boff no Jornal do Brasil:
Comensalidade: passagem do animal ao humano
Há indícios de que há 7 milhões de anos o ser humano partiu de um ancestral comum
A especificidade do ser humano surgiu de forma misteriosa e de difícil reconstituição histórica. Mas há indícios de que há 7 milhões de anos partiu de um ancestral comum, que teria começado a separação lenta e progressiva entre os símios superiores e os humanos.
Etnobiólogos e arqueólogos nos acenam para um fato singular. Quando nossos antepassados antropoides saíam a recoletar frutos, sementes, caças e peixes, não comiam individualmente. Tomavam os alimentos e os levavam ao grupo. E aí praticavam a comensalidade, o que significa: distribuíam os alimentos entre si e comiam-nos comunitariamente. Esta comensalidade permitiu o salto da animalidade em direção à humanidade. Essa pequena diferença faz toda uma diferença.
O que ontem nos fez humanos continua ainda hoje a fazer-nos de novo humanos. E se não estiver presente, nos faremos desumanos, cruéis e sem piedade. Não é esta, lamentavelmente, a situação da humanidade atual?
Não se trata nunca de apenas cozinhar os alimentos mas de dar-lhes sabor. As várias culinárias criam hábitos culturais, não raro vinculados, entre nós, a certas festas como o Natal (o peru), a Páscoa (ovos de chocolate), primeiro do ano (carne suína), a festa de São João (milho assado) e outras.
Nutrir-se nunca é uma mecânica biológica individual. Consumir comensalmente é comungar com os outros que conosco comem. É comungar com as energias cósmicas que subjazem aos alimentos, especialmente a fertilidade da terra, o sol, as florestas, as águas e os ventos.
Por volta de 10 a 12 mil anos atrás, ocorreu talvez a maior revolução da história humana: de nômades, os seres humanos se fizeram sedentários. Fundaram as primeiras vilas (12.000 a.C.), inventaram a agricultura (9.000 a.C.) e começaram a domesticar e a criar animais (8.500 a.C.). Criou-se um processo civilizatório extremamente complexo, com sucessivas revoluções: a industrial, a nuclear, a cibernética, a da nanotecnologia, a da informação até alcançar o nosso tempo.
Primeiramente, domesticaram-se vegetais e cereais selvagens, provavelmente, por mulheres mais observadoras dos ritmos da natureza. Tudo parece ter se iniciado no Oriente Médio entre os rios Tigre e Eufrates e no vale do Indus da Índia. Ai se domesticou o trigo, a cevada, a lentilha, a fava e a ervilha. Na América Latina foi o milho, o abacate, o tomate, a mandioca e os feijões. No Oriente foi o arroz e o milhete. Na Africa, o milho e o sorgo. Em seguida, por volta de 8.500 a.C. se domesticaram espécies animais, a começar pelas cabras, carneiros, depois o boi e o porco. Entre os galináceos a galinha foi a primeira. Tudo foi facilitado com a invenção da roda, da enxada e do arado e de outros utensílios de metal por volta de 4.000 a.C.
Estes poucos dados hoje são levantados cientificamente por arqueólogos e etnobiólogos, usando as mais modernas tecnologias do carbono radioativo, do microscópio eletrônico e da análise química de sedimentos, de cinzas, de pólens, de ossos e carvões de madeiras. Os resultados permitem reconstituir como era a ecologia local e como se operava a utilização econômica por parte das populações humanas.
Ao plantar e colher trigo ou arroz elas podiam criar reservas, organizar a alimentação dos grupos, fazer crescer a família e assim a população. Teve que ganhar a vida com o suor do seu rosto. E o fez com furor. O avanço da agricultura e da criação de animais fez desaparecer lentamente a décima parte de toda a vegetação selvagem e de animais. Não havia ainda a preocupação com a gestão responsável do meio ambiente. E é também difícil de imaginá-la, dada a riqueza dos recursos naturais e a capacidade de regeneração dos ecossistemas.
De todas as formas, o neolítico pôs em marcha um processo que nos alcança até os dias de hoje. A segurança alimentar e o grande banquete que a revolução agrícola poderia ter preparado para toda a humanidade, no qual todos seriam igualmente comensais, não pôde ser ainda celebrado. Mais de 1 bilhão de seres humanos estão ao pé da mesa, esperando alguma migalha para poderem matar a fome.
A Cúpula Mundial da Alimentação celebrada em Roma em 1996 que se propôs erradicar a fome até 2015 diz que “a seguridade alimentar existe quando todos os seres humanos têm, a todo o momento, um acesso físico e econômico a uma alimentação suficiente, sã e nutritiva, permitindo-lhes satisfazer suas necessidades energéticas e suas preferências alimentares a fim de levar uma vida sã e ativa”. Esse propósito foi assumido pelas Metas do Milênio da ONU. Lamentavelmente, a própria FAO comunicou em 1998 e agora a ONU que estes propósitos não serão alcançados a menos que se supere o fosso demasiadamente grande das desigualdades sociais.
Enquanto não dermos este salto, não completaremos nossa humanidade. Esse é o grande desafio do século 21: tornarmo-nos plenamente humanos.
* Leonardo Boff, teólogo e filósofo, é escritor. - lboff@leonardoboff.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário