Seminário sobre liberdade – Fenomenologia
da Percepção: capítulo III
À filosofia da existência, entre tantas outras contribuições ao
pensamento, pode-se atribuir a exploração de novos domínios, como as relações
pessoais entre os homens, com a abertura da discussão (ou da problematização)
colocada na ordem do dia do “ser-com”, “ser-para-outrem”, “tu”, “comunicação”,
“em-si”, “para-si” etc.
Um dos filósofos expoentes da
filosofia da existência é Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Ele, na
Fenomenologia da Percepção (1945), renova a problemática da intencionalidade
proposta por Husserl, enriquecendo-a com os resultados da psicologia da forma.
Mas afasta-se de Husserl ao lançar um novo olhar sobre nossa maneira de estar
no mundo, sobre o homem encarnado (de carne mesmo), sobre o corpo-próprio.
Merleau-Ponty tenta elucidar,
fundamentando-se na fenomenologia husserliana, a relação originária do homem
com o mundo. Fala da consciência, de um ser humano encarnado. O homem é
consciência, portanto, em Merleau-Ponty não se pode falar de consciência
separada, de um homem desencarnado (como em Descartes). O homem é consciência e
corpo ao mesmo tempo. É um todo. É do
mundo e no mundo ao mesmo tempo.
Quando trata da liberdade no
capítulo III da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty diz que não é fora de
mim que vou encontrá-la nem encontrar um limite para ela. Mas só posso ter
consciência da liberdade com o outro. Dou um sentido à minha vida, mas não por
meu querer, simplesmente, e sim porque sou no presente o meu passado e o meu
porvir, porque co-existo, porque sou socialmente situado e, portanto, minha
liberdade não pode me tornar isto ou aquilo. Sou livre mas, paradoxalmente,
estou como que limitado por uma cultura. Não adianta ter consciência de
liberdade para me tornar isto ou aquilo, ser o que desejo ser, pois
sou-com-o-outro, co-existo.
É preciso que exista uma
intersubjetividade para que eu possa falar em liberdade. “Sou um campo
intersubjetivo” sendo meu corpo e minha história. Minha liberdade tem cúmplice,
não é solitária. Sendo uma estrutura psicológica e histórica, não posso falar
em liberdade senão encarnado neste mundo, senão com o outro, pois o homem é um
ser de relações.
Tudo o que sou, o sou para mim e para outrem e não inteiramente para mim
mesmo. Minha liberdade não é limitada por nada, senão por aquilo que ela mesma
determinou como limite por suas iniciativas e só tenho o exterior que eu mesmo
me dou. Portanto, não há nada de determinável em nós, humanos. Somos livres e
escolhemos livremente, mesmo que os obstáculos nos pareçam intransponíveis e
nos quedemos à acomodação. Merleau-Ponty diz que é “a liberdade que faz
aparecer os obstáculos à liberdade de forma que não podemos opô-los a ela como
limites” (588).
Aliás, sem obstáculos, ou melhor dizendo, sem algo que nos induza ao
exercício da liberdade, não podemos falar em liberdade, pois tudo seria
possível, tudo seria fruto da minha vontade. Não haveria porque pensar ou falar
em liberdade. Esta palavra não constaria dos dicionários. Sou livre desde o
momento em que faço escolhas, em que tomo decisões. Merleau-Ponty, quando
discorre sobre ser operário ou ser burguês mostra muito bem que a liberdade é
vivida, é concreta e só é, de fato, quando o homem está situado, quando toma
consciência de si como agente e dá um sentido à sua vida, coloca-se diante do
mundo ou no mundo dessa ou daquela maneira. Sentido que não é intelectualmente
concebido, mas fruto de minha história, minha cultura, de meu modo de
co-existência passado e presente.
Minha liberdade não me torna isto ou aquilo que decido ser
instantaneamente. Ela não é fruto de meu querer apenas, mas de meu viver, de
mim mesmo enquanto ser situado. Na verdade, como diz Merleau-Ponty, “é preciso
que minha vida tenha um sentido que eu não constitua, que a rigor exista uma
intersubjetividade, que cada um de nós seja simultaneamente um anônimo no
sentido da individualidade absoluta e um anônimo no sentido da generalidade
absoluta” (601). No que tange à história, Merleau-Ponty diz que damos um
sentido à história, mas não sem que ela o proponha para nós. “O sujeito da
história não é o indivíduo. Há troca entre a existência generalizada e a
existência individual, cada uma recebe e dá” (603).
Em suma, o que Merleau-Ponty diz é
que nossa existência está essencialmente ligada a existência de outrem. Somos
intersubjetividade e só podemos falar em liberdade, verdadeiramente, como
liberdade vivida. A consciência se faz no mundo e a liberdade uma escolha
continuamente renovada. Com efeito, o mundo do
qual nascemos é o mesmo mundo no qual
nascemos. E se ele está já constituído, não o está completamente. Se ser do
mundo é uma condição que nos precede e sobre a qual nada podemos fazer, ser no
mundo já compete a nós, humanos, e estamos abertos a uma infinidade de possíveis.
Somos do mundo e no mundo ao mesmo tempo e, por isso, não sou determinado de
modo absoluto, nem nunca posso fazer uma escolha absoluta.
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