Avelino Ferreira, 63 anos, brasileiro, casado, sete filhos, sete netos. Jornalista; escritor; professor de Filosofia.







terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Num momento de tanta violência, um artigo para reflexão

Num momento em que, parece, as pessoas espancam o outro, matam o outro por motivos torpes, por prazer às vezes; num momento em que o outro parece nada significar para grande parte da humanidade, achei por bem postar um artigo que escrevi sobre uma obra de Merleau-Ponty, que diz que, sem o outro, somos nada. Não somos. Quem tiver curiosidade e tempo e, claro, queira ler algo que nada tem a ver com o lugar comum, da mesmice, insisto que leia o artigo a seguir, escrito em 2006:

Seminário sobre liberdade – Fenomenologia da Percepção: capítulo III

À filosofia da existência, entre tantas outras contribuições ao pensamento, pode-se atribuir a exploração de novos domínios, como as relações pessoais entre os homens, com a abertura da discussão (ou da problematização) colocada na ordem do dia do “ser-com”, “ser-para-outrem”, “tu”, “comunicação”, “em-si”, “para-si” etc.

            Um dos filósofos expoentes da filosofia da existência é Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Ele, na Fenomenologia da Percepção (1945), renova a problemática da intencionalidade proposta por Husserl, enriquecendo-a com os resultados da psicologia da forma. Mas afasta-se de Husserl ao lançar um novo olhar sobre nossa maneira de estar no mundo, sobre o homem encarnado (de carne mesmo), sobre o corpo-próprio.
            Merleau-Ponty tenta elucidar, fundamentando-se na fenomenologia husserliana, a relação originária do homem com o mundo. Fala da consciência, de um ser humano encarnado. O homem é consciência, portanto, em Merleau-Ponty não se pode falar de consciência separada, de um homem desencarnado (como em Descartes). O homem é consciência e corpo ao mesmo tempo. É um todo. É do mundo e no mundo ao mesmo tempo.

            Quando trata da liberdade no capítulo III da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty diz que não é fora de mim que vou encontrá-la nem encontrar um limite para ela. Mas só posso ter consciência da liberdade com o outro. Dou um sentido à minha vida, mas não por meu querer, simplesmente, e sim porque sou no presente o meu passado e o meu porvir, porque co-existo, porque sou socialmente situado e, portanto, minha liberdade não pode me tornar isto ou aquilo. Sou livre mas, paradoxalmente, estou como que limitado por uma cultura. Não adianta ter consciência de liberdade para me tornar isto ou aquilo, ser o que desejo ser, pois sou-com-o-outro, co-existo.

            É preciso que exista uma intersubjetividade para que eu possa falar em liberdade. “Sou um campo intersubjetivo” sendo meu corpo e minha história. Minha liberdade tem cúmplice, não é solitária. Sendo uma estrutura psicológica e histórica, não posso falar em liberdade senão encarnado neste mundo, senão com o outro, pois o homem é um ser de relações. 

Tudo o que sou, o sou para mim e para outrem e não inteiramente para mim mesmo. Minha liberdade não é limitada por nada, senão por aquilo que ela mesma determinou como limite por suas iniciativas e só tenho o exterior que eu mesmo me dou. Portanto, não há nada de determinável em nós, humanos. Somos livres e escolhemos livremente, mesmo que os obstáculos nos pareçam intransponíveis e nos quedemos à acomodação. Merleau-Ponty diz que é “a liberdade que faz aparecer os obstáculos à liberdade de forma que não podemos opô-los a ela como limites” (588). 

Aliás, sem obstáculos, ou melhor dizendo, sem algo que nos induza ao exercício da liberdade, não podemos falar em liberdade, pois tudo seria possível, tudo seria fruto da minha vontade. Não haveria porque pensar ou falar em liberdade. Esta palavra não constaria dos dicionários. Sou livre desde o momento em que faço escolhas, em que tomo decisões. Merleau-Ponty, quando discorre sobre ser operário ou ser burguês mostra muito bem que a liberdade é vivida, é concreta e só é, de fato, quando o homem está situado, quando toma consciência de si como agente e dá um sentido à sua vida, coloca-se diante do mundo ou no mundo dessa ou daquela maneira. Sentido que não é intelectualmente concebido, mas fruto de minha história, minha cultura, de meu modo de co-existência passado e presente.

Minha liberdade não me torna isto ou aquilo que decido ser instantaneamente. Ela não é fruto de meu querer apenas, mas de meu viver, de mim mesmo enquanto ser situado. Na verdade, como diz Merleau-Ponty, “é preciso que minha vida tenha um sentido que eu não constitua, que a rigor exista uma intersubjetividade, que cada um de nós seja simultaneamente um anônimo no sentido da individualidade absoluta e um anônimo no sentido da generalidade absoluta” (601). No que tange à história, Merleau-Ponty diz que damos um sentido à história, mas não sem que ela o proponha para nós. “O sujeito da história não é o indivíduo. Há troca entre a existência generalizada e a existência individual, cada uma recebe e dá” (603). 

            Em suma, o que Merleau-Ponty diz é que nossa existência está essencialmente ligada a existência de outrem. Somos intersubjetividade e só podemos falar em liberdade, verdadeiramente, como liberdade vivida. A consciência se faz no mundo e a liberdade uma escolha continuamente renovada. Com efeito, o mundo do qual nascemos é o mesmo mundo no qual nascemos. E se ele está já constituído, não o está completamente. Se ser do mundo é uma condição que nos precede e sobre a qual nada podemos fazer, ser no mundo já compete a nós, humanos, e estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Somos do mundo e no mundo ao mesmo tempo e, por isso, não sou determinado de modo absoluto, nem nunca posso fazer uma escolha absoluta.

Minha liberdade se faz no mundo, na intersubjetividade e não na minha singularidade. De outro modo: não posso falar de minha liberdade sem falar da liberdade. Clarificando: Para Merleau-Ponty a liberdade individual está intrinsecamente ligada à liberdade geral. Liberdade é, em suma, a expressão do humano. 

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